quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Notas sobre ela, aquela vadia.


O relógio marca 22h54 e nada dela chegar.
Você tenta matar o tempo enfileirando algumas palavras que possam vir a fazer algum sentido, mas não obtém muito sucesso. Bom, tudo está ali: paráfrases, paródias — bricolagem a torto e a direito —, mas sucesso? Não, nada de sucesso. Está ok, mas ok não é bom, e você não quer bom, você quer melhor que isso.
Vinte e três horas. Deu por hoje.
No caminho de casa, você pensa nela com carinho e flerta com a ideia de ser surpreendido durante o percurso. Pobre criatura, esqueceu-se: ela é uma vadia sem alma.
Você chega em casa. Nada parece fazer sentido. Janta o que tem, lava o que precisa e dorme. Amanhã, sem falta.
Ela não pode ser tão cruel assim.
O celular desperta. Você não abre os olhos, mas desperta com ele — na medida do possível, claro. É dia. Terça, quarta? Você ainda não sabe, mas antes que se dê conta, o vazio lhe engole, ela não veio. De novo.
Você enfia a cabeça embaixo do travesseiro e espera que essa sensação de abandono acabe.
Acompanhado ou não, você está sozinho na sua cama. É como nadar no escuro.
Amanhece e, sem muita dignidade, você tenta erguer seu saco de ossos, tromba pelas paredes e chega ao banheiro. Mira o sanitário. Erra.
O dia está só começando.
Depois do banho, já mais desperto, você quebra um ou dois ovos sobre a frigideira. Ao fundo, algum paspalho distribui opiniões parciais no noticiário.
O som da porta se abrindo é um alento.
Sua garota e seus cachorros chegam da caminhada matinal. De repente, como mágica, tudo passa a fazer sentido: o noticiário, o cachorro, a garota. Em semanas, é a primeira vez que você relaxa. Em semanas, é a primeira vez que seu cérebro faz as conexões necessárias. Em semanas, é a primeira vez que ela aparece:
aquela vadia.
Profissionais especialistas publicam onde podem que o trabalho publicitário não é arte, logo, não se precisa dela. E, apesar de ter muita arte aplicada ali, você concorda, não é arte. É venda.
Mas há quem diga que vender é uma arte. E quem disse que apenas artistas precisam de inspiração, aquela cadela vadia?
É claro que você precisa dela. Você precisa dela pra tudo, inclusive pro trabalho. Principalmente pro trabalho.
Você entende que depender dela é um erro, mas daí a não precisar, temos um abismo daqueles. Você precisa de inspiração até para se levantar da cama. Claro, você não pode depender de algo tão leviano para viver, mas depender não é precisar. E é claro que você precisa. Quem não precisaria?
Estar com ela é ter a sensação de cama cheia, do coração saltando pela boca, de ter as pernas emboladas a ponto de não saber quais são as suas e quais são as dela. É dançar sem gravidade. É viver como se a morte não tivesse fôlego para seguir fazendo o trabalho dela, dando vida eterna ao seu.
Os profissionais especialistas falam demais. E, sejamos honestos, o mundo já está cheio deles, em todos os sentidos.
O que está faltando mesmo, são mais amadores apaixonados. Está faltando mais olhares atenciosos ao redor e mais paixão ao que se enxerga.
A inspiração é ciumenta, ela só precisa ver você se distraindo com outra coisa para aparecer. E quando ela aparece, vocês dançam.
E dançar com ela, você sabe. Se você já dançou com ela, você sabe.
Aquela vadia sem alma.